sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Obituário B - João Paulo de Carvalho


Pra mim, um dos mais bonitos e divertidos caprichos da vida, são certas pessoas que ela coloca em nosso caminho.

                                               

                                                   
Depois de ler o “Obituário”  http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-principe-dos-tempos na revista Piauí  escrito pelo editor da revista e grande documentarista João Moreira Sales, pelo falecimento de João Paulo de Carvalho, nosso Fofinho, chorei por dois dias.  De título “O Príncipe dos Tempos”, lindo texto, muito respeitoso, com detalhes factuais sobre sua carreira, com um olhar pessoal e sensível sobre nosso amigo, no período em que os dois foram mais próximos.

Eu convivi com João Paulo, pra mim "Fofy", em outra fase de sua vida. Trabalhamos juntos no início de minha vida profissional, pontualmente, evoluindo até um convívio diário árduo, durante anos.

Nasceu uma amizade e uma intimidade paterna, que durou até seus últimos dias.

Sua aventura terrena, dá um livro.

De uma inteligência refinada e um humor próprio, sua vida teve peripécias lendárias. Suas travessuras e causos sempre me fascinaram.  Comecei a catalogar estas pequenas histórias, ainda em sua vida. Narradas por ele próprio, terceiros, ou testemunhas das mais diversas.

Acho que ele merece, ainda que toscamente em minhas linhas, um Obituário B, com um pouco mais destes causos.  Em sua memória e aos amigos que ficam.

Umas das primeiras vezes que vi João Paulo, foi numa finalizadora, por volta das sete e meia da manhã.  Ele estava no meio de uma escada, se apoiando no corrimão  para não cair. Olhou para mim, como se fosse uma situação normal e sem a menor vergonha do seu estado etílico, na maior educação, me cumprimentou sorrindo:  “Oi fofinho!”.

Esta historia de “Oi fofinho(a)! Oh fofinho(a)!”, simplificava desde um “Bom dia!”, até no tratamento do dia a dia com qualquer colega ou pessoa ao seu redor.

Já editava assim um tempo morto de tentar lembrar o nome das inúmeras pessoas com que trabalhava, cruzava, ou que conhecia, em sua rodada vida profissional. Porteiro, jornaleiro, taxistas, assistentes de ilha, secretárias; qualquer distinto cidadão que cruzasse seu caminho, fazia questão de cumprimentar, desta forma carinhosa. Era mesmo por educação e simpatia nata.

Virou seu bordão. Também seu apelido. Fofinho, fofy, fofs…

Mesmo quando cambaleante de bêbado, era gentil e quase não se alterava.  Ele me contou que durante muito tempo, acordava cedo, dava um tecão, servia uma dose dupla de whisky,  lia o jornal do dia fumando um baseadão.  Isso antes de sair de casa pelas sete da manhã pra trabalhar.

Nesse ritmo, lá pelas nove e pouco (ou em alguns momentos) costumava apagar num sofá amigo próximo ou dentro das ilhas.  Na TVZERO havia um sofá “tombado”, inaugurado com festa e tudo; em sua homenagem, com uma placa de metal “Sofá João Paulo de Carvalho, ano tal…”.

Meu convívio profissional mais intenso com João, foi numa fase pós dopping de sua vida.  Parece que uma assistente dele, a "fofinha" Xuxa, o ajudou muito a pegar mais leve. Apenas tacinhas de vinho branco no almoço e depois do trabalho em casa.

As dormidas/apagões cessaram, salvo um cochilinho amigo, depois de um lauto almoço. Lembro dele, Aru (grande parceiro, editor e amigo dessa época) e eu, sentadinhos apertados num sofázinho cochilando no escurinho refrescante da ilha.

                                               
                                               João, Aruanã e eu.

João nunca operou as máquinas de edição.  Passou por toda evolução tecnológica da edição na televisão, na TV Globo.  Dos sistemas lineares até o digital, ele sempre dependeu de um operador. Com a rapidez dos avanços das tecnologias, geralmente os profissionais que encontrava tinham pouca experiência de edição. Eram apertadores de botão.

Desenvolveu ao longo do tempo, um método técnico e interpessoal de trabalho com estes colegas, de quem dependia muito.  Sempre através da sinergia, graduou inúmeros operadores em editores sagazes. Formou informalmente diversas gerações.

Seu primeiro approach na edição se deu numa novela onde era produtor e assistente de direção. O material filmado não tinha nenhuma indexação ou referência de qual sequência pertencia. Não usaram claquete nas cenas filmadas. João foi mandado as pressas, para dizer o que era o que, das imagens. Acabou ficando por necessidade e se apaixonando na brincadeira de encaixar.

Nos corredores da Globo, seu nome virou lenda, reverenciado pela pesada e pelos famosos.

São muitas sua histórias por lá. 

- Sussurrava palavrões e insultos pelo elevador de fitas, quando havia apresentações importantes nas ilhas de baixo ou de cima.  

- Fingia que dormia, forçando roncos com a boca aberta, bem as caras, quando passava alguma visita importante de ilustres ou investidores pelas ilhas.

- Uma das mais famosas histórias dessa época, foi em algum especial de fim de ano.  Na véspera do programa ir ao ar, aparece o diretor. Se senta para ver o corte final e começa freneticamente a pedir diversas alterações. Sendo edição linear, qualquer alteração muito drástica de tempo e ordem, era difícil e bastante demorado de fazer. 
João se levanta ao lado e começa a tirar o cinto, abrir a calça, quando o diretor se dá conta, João está com a calça arriada, se vira mostrando a bunda, dizendo “Quer me foder? Quer? Então fode direito!” Pode parecer mentira, mas trabalhei com um diretor, que era assistente de ilha e foi testemunha:  “Conheci João Paulo pelo c…  Imediatamente fiquei fã dele.” 

Nesta época era demitido de um projeto, e contratado imediatamente por outro diretor para a ilha ao lado.  Demitido de novo, era re-contratado ao projeto anterior.  Ficava pulando de ilha em ilha. Ninguém tinha a mágica dele.

Destes amigos da TV  dos tempos passados, com os aposentados de menos sorte, sozinhos, ou com problemas de saúde João dava atenção especial. Os visitava rotineiramente, ajudava não só financeiramente, mas praticamente no que podia. Costumava levá-los em visitas às ilhas onde estava editando, mostrava o trabalho, pedia conselhos. Contava as glórias e talentos às gerações mais novas, inevitavelmente, de que era colega. Os respeitava e reverenciava com atenção e carinho. Amigo fiel.
  
Fora da Globo, nunca fora unânime. Foi tachado de ultrapassado, fazedor de fusões, chato, alcoólatra, fora do orçamento pois precisava de assistente ou operador para editar.  Eu vi, muitos colegas arrotadores de erudição, roubarem trabalhos dele, nesta conversa, nesta goga. 

Como produtor, eu também já passei uma lábia para convencer um diretor, ou produtor.  Vendi a experiência de João, como ex-diretor na TV Tupi onde na verdade, ele apenas fora figurante no seu início profissional.

Aliás, um dia ele me deu um lindo depoimento em frente ao cassino da urca. Contando quando as portas do estúdio da TV Tupi se abriram, e ele viu o palco pela primeira vez. Se encantou perdidamente. Teve a certeza de que queria participar desse mundo.   

                                                          


Nunca vi ele falar mal de ninguém.  Era extremamente generoso, quando podia, incluía os assistentes-editores, nos créditos da montagem.  Quando elogiava alguém, era na frente do produtor ou diretor.

Não houve formato audiovisual que não tivesse trabalhado e inovado muitas vezes.  Sempre encarava o trabalho do dia, qualquer que fosse ele. Não reclamava da qualidade da imagem. Tentava tirar o melhor, o possível, de qualquer material que tinha na frente, bom ou ruim, não perdia um frame.

Apesar da experiência notória, seu know-how e status de mestre jedi, nunca o “O fracasso subiu-lhe a cabeça!” como costumava citar, tirando sarro de alguém.

Se tivessem apenas três planos bundas, para fazer  três versões em 10 min, ele entregava. Não seria uma obra prima, mas esta habilidade e rapidez, de trabalhar com o que se tem, poucos são os editores capazes. Já vi sequencias filmadas a caralho, inmontáveis, parecendo de sacanagem; serem resolvidas rápidas, como um joguinho de encaixe para bebes, sem nenhum efeito, jump cut ou artifícios "extras" de montagem.

Percebi sua enorme capacidade técnica, uma vez que tive que cobrir no olho, um trecho de uma edição no filme do Zico ( http://www.imdb.com/title/tt0337513/?ref_=nv_sr_5 ), com jogadas, num pequeno clip musical dentro do filme.  Passei a madrugada na tarefa, e vi seu talento, comparando frames entre fusões de início/fim e sobreposições entre diversas jogadas do craque.  Que diferença um "framinho" ou eixo da fusão fazia na montagem, quando feito pelo João.  Outro exemplo de seu talento de montagem é o bom filme 1972, http://www.imdb.com/title/tt0337564/?ref_=nv_sr_2 .

Não tinha ego, vaidade ou verdades em seu trabalho. Deixava os que não acompanhavam seus argumentos, diretores, produtores teimosos, atrapalharem, ou até piorarem seu trabalho, sem ressentimentos. Para aprovar um corte, ele se virava da cadeira encarando o responsável e perguntava com seu sorriso bonito “Gostamos??”.  Os sábios seguiam seus conselhos.

Era de um profissionalismo extremo. Gostava de chegar bem cedo, e de quem era pontual como ele.  Tinha quase um medo da noite. Quando preciso, mesmo  depois de 12 hs trabalhadas, virava a noite.  Era casca grossa, o baixinho. Batia assistentes e co-editores vinte anos mais novos que ele.  

Lembro destas aprovações demoradas quando ele falava num tom bravo comigo: “Só vou esperar o Diller (produtor no caso) mais 5 hs! Depois vou embora viu?” me sacaneando pelo atraso do chefe.

Não suportava pequenos atrasos ou algumas impertinências na organização do trabalho dentro da máquina, que cortavam ou atrasavam o seu raciocínio. Errar era permitido, ser teimoso no que não funcionava não…e se atrasar sem motivo ou aviso…acumulavam pontos negativos.  Em algum momento estourava numa bronca feia, injusta ou desproporcional, na hora errada.  Magoava.  Brigas eram exceções pontuais.

Prático, didático, sempre queria facilitar, pensava no trabalho do próximo, antecipava problemas de toda ordem, discutia logística, sabia do todo. Principalmente do gosto, da psicologia dos produtores e diretores. Sabia ouvir e discutia sempre na direção da sinergia. 

Eu costuma sempre ligar a noite, quando ficava orgulhoso de fazer um corte bom, ou ruim, pra contar a ele. Ouvir sua opinião, consultar sua sabedoria, falar bobagens, assuntos sérios, saber de sua saúde, que não andava muito bem.  

Hoje, quando estou diante de uma dúvida profissional de conduta, penso sempre em como o João agiria. Quando estou numa enrascada de edição, penso em como João faria, ou num desespero imediato “Porra João, porra Fofy, me dá uma luz!  São Fofy me ajude nesta hora!”.  De conselheiro, virou oráculo.

Viva o padroeiro: João Paulo de Carvalho, São Fofy.  Saudades amigo!



                                       Foto: Roberto Rais