Pra mim, um dos mais bonitos e divertidos caprichos da vida, são certas
pessoas que ela coloca em nosso caminho.
Depois de ler o “Obituário” http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-principe-dos-tempos na revista Piauí escrito pelo editor da revista e grande documentarista João Moreira Sales, pelo falecimento de João Paulo de Carvalho, nosso Fofinho, chorei por dois dias. De título “O Príncipe dos Tempos”, lindo texto, muito respeitoso, com detalhes factuais sobre sua carreira, com um olhar pessoal e sensível sobre nosso amigo, no período em que os dois foram mais próximos.
Eu convivi com João Paulo, pra mim "Fofy", em outra fase de sua vida. Trabalhamos juntos no início
de minha vida profissional, pontualmente, evoluindo até um convívio diário árduo,
durante anos.
Nasceu uma amizade e uma intimidade paterna, que durou até seus últimos
dias.
Sua aventura terrena, dá um livro.
De uma inteligência refinada e um humor próprio, sua vida teve peripécias
lendárias. Suas travessuras e causos sempre me fascinaram. Comecei a catalogar estas pequenas histórias,
ainda em sua vida. Narradas por ele próprio, terceiros, ou testemunhas das mais
diversas.
Acho que ele merece, ainda que toscamente em minhas linhas, um Obituário B,
com um pouco mais destes causos. Em sua memória e aos amigos que ficam.
Umas das primeiras vezes que vi João Paulo, foi numa finalizadora, por
volta das sete e meia da manhã. Ele estava
no meio de uma escada, se apoiando no corrimão
para não cair. Olhou para mim,
como se fosse uma situação normal e sem a menor vergonha do seu estado etílico, na maior educação, me cumprimentou sorrindo:
“Oi fofinho!”.
Esta historia de “Oi fofinho(a)! Oh fofinho(a)!”, simplificava desde um “Bom
dia!”, até no tratamento do dia a dia com qualquer colega ou pessoa ao seu
redor.
Já editava assim um tempo morto de tentar lembrar o nome das inúmeras pessoas com que
trabalhava, cruzava, ou que conhecia, em sua rodada vida
profissional. Porteiro, jornaleiro, taxistas, assistentes de ilha, secretárias;
qualquer distinto cidadão que cruzasse seu caminho, fazia questão de
cumprimentar, desta forma carinhosa. Era mesmo por educação e simpatia nata.
Virou seu bordão. Também seu apelido. Fofinho, fofy, fofs…
Mesmo quando cambaleante de bêbado, era gentil e quase não se
alterava. Ele me contou que durante muito
tempo, acordava cedo, dava um tecão, servia uma dose dupla de whisky, lia o jornal do dia fumando um baseadão. Isso antes de sair de casa pelas sete da
manhã pra trabalhar.
Nesse ritmo, lá pelas nove e pouco (ou em alguns momentos) costumava apagar num sofá amigo próximo ou dentro das
ilhas. Na TVZERO havia um sofá “tombado”,
inaugurado com festa e tudo; em sua homenagem, com uma placa de metal “Sofá
João Paulo de Carvalho, ano tal…”.
Meu convívio profissional mais intenso com João, foi numa fase pós dopping
de sua vida. Parece que uma assistente
dele, a "fofinha" Xuxa, o ajudou muito a pegar mais leve. Apenas tacinhas de vinho branco no almoço e depois do trabalho em casa.
As dormidas/apagões cessaram, salvo um cochilinho amigo, depois de um lauto
almoço. Lembro dele, Aru (grande parceiro, editor e amigo dessa época) e eu,
sentadinhos apertados num sofázinho cochilando no escurinho
refrescante da ilha.
João, Aruanã e eu.
João nunca operou as máquinas de edição. Passou por toda evolução tecnológica da edição na televisão, na TV Globo. Dos sistemas lineares até o digital, ele sempre dependeu de um operador. Com a rapidez dos avanços das tecnologias, geralmente os profissionais que encontrava tinham pouca experiência de edição. Eram apertadores de botão.
Desenvolveu ao longo do tempo, um método técnico e interpessoal de
trabalho com estes colegas, de quem dependia muito. Sempre através da sinergia, graduou inúmeros operadores
em editores sagazes. Formou informalmente diversas gerações.
Seu primeiro approach na edição se deu numa novela onde era produtor e
assistente de direção. O material
filmado não tinha nenhuma indexação ou referência de qual sequência
pertencia. Não usaram claquete nas cenas
filmadas. João foi mandado as pressas,
para dizer o que era o que, das imagens. Acabou ficando por necessidade e se apaixonando na brincadeira de encaixar.
Nos corredores da Globo, seu nome virou lenda, reverenciado pela pesada e
pelos famosos.
São muitas sua histórias por lá.
- Sussurrava palavrões e insultos pelo elevador de fitas, quando havia apresentações importantes nas ilhas de baixo ou de cima.
- Fingia que dormia, forçando roncos com a boca aberta, bem as caras, quando passava alguma visita importante de ilustres ou investidores pelas ilhas.
- Sussurrava palavrões e insultos pelo elevador de fitas, quando havia apresentações importantes nas ilhas de baixo ou de cima.
- Fingia que dormia, forçando roncos com a boca aberta, bem as caras, quando passava alguma visita importante de ilustres ou investidores pelas ilhas.
- Uma das mais famosas histórias dessa época, foi em algum especial de
fim de ano. Na véspera do programa ir ao
ar, aparece o diretor. Se senta para ver o corte final e começa
freneticamente a pedir diversas alterações. Sendo edição linear, qualquer alteração muito drástica de tempo e ordem,
era difícil e bastante demorado de fazer.
João se levanta ao lado e começa a tirar o cinto, abrir a calça, quando o
diretor se dá conta, João está com a calça arriada, se vira mostrando a bunda, dizendo
“Quer me foder? Quer? Então fode direito!” Pode parecer mentira, mas trabalhei com um diretor, que era assistente
de ilha e foi testemunha: “Conheci João
Paulo pelo c… Imediatamente fiquei fã
dele.”
Nesta época era demitido de um projeto, e contratado imediatamente por outro diretor para a ilha ao lado. Demitido de novo, era re-contratado ao projeto anterior. Ficava pulando de ilha em ilha. Ninguém tinha a mágica dele.
Nesta época era demitido de um projeto, e contratado imediatamente por outro diretor para a ilha ao lado. Demitido de novo, era re-contratado ao projeto anterior. Ficava pulando de ilha em ilha. Ninguém tinha a mágica dele.
Destes amigos da TV dos tempos
passados, com os aposentados de menos sorte, sozinhos, ou com problemas de saúde João
dava atenção especial. Os visitava rotineiramente, ajudava não só financeiramente, mas
praticamente no que podia. Costumava levá-los em
visitas às ilhas onde estava editando, mostrava o trabalho, pedia conselhos.
Contava as glórias e talentos às gerações mais novas, inevitavelmente, de que
era colega. Os respeitava e reverenciava
com atenção e carinho. Amigo fiel.
Fora da Globo, nunca fora unânime. Foi tachado de ultrapassado, fazedor de fusões, chato, alcoólatra, fora do orçamento pois precisava de assistente ou operador para editar. Eu vi, muitos colegas arrotadores de erudição, roubarem trabalhos dele, nesta conversa, nesta goga.
Como produtor, eu também já passei uma lábia para
convencer um diretor, ou produtor. Vendi
a experiência de João, como ex-diretor na TV Tupi onde na verdade, ele apenas fora figurante no
seu início profissional.
Aliás, um dia ele me deu um lindo depoimento em frente ao cassino da urca. Contando quando as portas do estúdio da TV
Tupi se abriram, e ele viu o palco pela primeira vez. Se encantou perdidamente.
Teve a certeza de que queria participar desse mundo.
Nunca vi ele falar mal de ninguém. Era extremamente generoso, quando podia, incluía os assistentes-editores, nos créditos da montagem. Quando elogiava alguém, era na frente do produtor ou diretor.
Não houve formato audiovisual que não tivesse trabalhado e inovado muitas vezes. Sempre encarava o trabalho do dia, qualquer que fosse ele. Não reclamava da qualidade da imagem. Tentava tirar o melhor, o possível, de qualquer material que tinha na frente, bom ou ruim, não perdia um frame.
Apesar da experiência notória, seu know-how e status de mestre jedi, nunca o “O fracasso subiu-lhe a cabeça!” como costumava citar, tirando sarro de alguém.
Se tivessem apenas três planos bundas, para fazer três versões em 10 min, ele entregava. Não
seria uma obra prima, mas esta habilidade e rapidez, de trabalhar com o que se
tem, poucos são os editores capazes. Já
vi sequencias filmadas a caralho, inmontáveis, parecendo de sacanagem; serem
resolvidas rápidas, como um joguinho de encaixe para bebes, sem nenhum efeito,
jump cut ou artifícios "extras" de montagem.
Percebi sua enorme capacidade técnica, uma vez que tive que cobrir no olho, um trecho de uma edição no filme do Zico ( http://www.imdb.com/title/tt0337513/?ref_=nv_sr_5 ), com jogadas, num pequeno clip musical dentro do filme. Passei a madrugada na tarefa, e vi seu talento, comparando frames entre fusões de início/fim e sobreposições entre diversas jogadas do craque. Que diferença um "framinho" ou eixo da fusão fazia na montagem, quando feito pelo João. Outro exemplo de seu talento de montagem é o bom filme 1972, http://www.imdb.com/title/tt0337564/?ref_=nv_sr_2 .
Não tinha ego, vaidade ou verdades em seu trabalho. Deixava os que não acompanhavam seus argumentos, diretores, produtores teimosos, atrapalharem, ou até piorarem seu trabalho, sem ressentimentos. Para aprovar um corte, ele se virava da cadeira encarando o responsável e perguntava com seu sorriso bonito “Gostamos??”. Os sábios seguiam seus conselhos.
Percebi sua enorme capacidade técnica, uma vez que tive que cobrir no olho, um trecho de uma edição no filme do Zico ( http://www.imdb.com/title/tt0337513/?ref_=nv_sr_5 ), com jogadas, num pequeno clip musical dentro do filme. Passei a madrugada na tarefa, e vi seu talento, comparando frames entre fusões de início/fim e sobreposições entre diversas jogadas do craque. Que diferença um "framinho" ou eixo da fusão fazia na montagem, quando feito pelo João. Outro exemplo de seu talento de montagem é o bom filme 1972, http://www.imdb.com/title/tt0337564/?ref_=nv_sr_2 .
Não tinha ego, vaidade ou verdades em seu trabalho. Deixava os que não acompanhavam seus argumentos, diretores, produtores teimosos, atrapalharem, ou até piorarem seu trabalho, sem ressentimentos. Para aprovar um corte, ele se virava da cadeira encarando o responsável e perguntava com seu sorriso bonito “Gostamos??”. Os sábios seguiam seus conselhos.
Era de um profissionalismo extremo. Gostava de chegar bem cedo, e de quem
era pontual como ele. Tinha quase um medo da noite. Quando preciso, mesmo depois de 12 hs trabalhadas, virava a noite. Era casca grossa, o baixinho.
Batia assistentes e co-editores vinte anos mais novos que ele.
Lembro destas aprovações demoradas quando ele falava num tom bravo comigo: “Só vou esperar o Diller (produtor no caso) mais 5 hs! Depois vou embora viu?” me sacaneando pelo atraso do chefe.
Lembro destas aprovações demoradas quando ele falava num tom bravo comigo: “Só vou esperar o Diller (produtor no caso) mais 5 hs! Depois vou embora viu?” me sacaneando pelo atraso do chefe.
Não suportava pequenos atrasos ou algumas impertinências na organização do trabalho
dentro da máquina, que cortavam ou atrasavam o seu raciocínio. Errar era permitido,
ser teimoso no que não funcionava não…e se atrasar sem motivo ou aviso…acumulavam
pontos negativos. Em algum momento
estourava numa bronca feia, injusta ou desproporcional, na hora errada. Magoava. Brigas eram exceções pontuais.
Prático, didático, sempre queria facilitar, pensava no trabalho do
próximo, antecipava problemas de toda ordem, discutia logística, sabia do todo.
Principalmente do gosto, da psicologia dos produtores e diretores. Sabia ouvir
e discutia sempre na direção da sinergia.
Eu costuma sempre ligar a noite, quando ficava orgulhoso de fazer um corte bom, ou ruim, pra contar a ele. Ouvir sua opinião, consultar sua sabedoria, falar bobagens, assuntos sérios, saber de sua saúde, que não andava muito bem.
Hoje, quando estou diante de uma dúvida profissional de conduta, penso
sempre em como o João agiria. Quando estou numa enrascada de edição, penso em como João
faria, ou num desespero imediato “Porra João, porra Fofy, me dá uma luz! São Fofy me ajude nesta hora!”. De conselheiro, virou oráculo.
Viva o padroeiro: João Paulo de Carvalho, São Fofy. Saudades amigo!
Foto: Roberto Rais